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'O campeonato de Portugal não é o dos vinhos baratos'; confira entrevista com o enólogo João Maria Ramos

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O enólogo português João Maria Ramos

Inevitável começar a falar do enólogo português João Maria Portugal Ramos, de 30 anos, sem mencionar seu pai, o premiado produtor João Portugal Ramos. Um dos herdeiros de umas marcas mais respeitadas daquele país, João Maria veio ao Brasil para o evento Vinhos de Portugal, onde apresentou os rótulos feitos pela família, que tem quatro vinícolas. A mais importante fica no Alentejo, em Estremoz, a maior região produtora de vinhos portugueses. A mais antiga é a Quinta de Foz de Arouce, na região das Beiras, com eles desde o século XVIII.

Qualidade reconhecidaSeis vinhos brasileiros conquistam medalha gran ouro em concurso com mais de 900 amostras

Entre os vinhos da marca à venda no Brasil, estão desde o premium Marquês de Borba Reserva, até o moderno e descomplicado Pouca Roupa, que tem versões branca, rosé e tinta. A linha foi criada de olho numa tendência apontada por João Maria, a da busca por vinhos mais frescos. Outros rótulos por aqui são os tintos e brancos das linhas Duorum e Loios. O enólogo revela que a casa busca ampliar suas vendas para cá, mas tem a clareza de que seu campeonato não é o dos vinhos baratos, e sim os de média e alta gama.

João Maria também abordou um tema caro a todo o setor de vinhos, a sustentabilidade. Ele lembra que o Alentejo sofre com a falta d’água e por isso todos na vinícola estão envolvidos com economia desse recurso, em especial durante a vindima. O uso de garrafas mais leves já é uma realidade nos vinhos mais jovens, mas ele reconhece que ainda não nos de alta gama. Confira a entrevista exclusiva ao Saideira:

O começo de tudo

A empresa faz 30 anos este ano. O início oficial foi quando meu pai fez seu primeiro vinho. Ele era consultor antes. A empresa é mais antiga. Foi na colheita de 1992. Temos empresas mais antigas no grupo, como a Foz de Arouce, que está na família há 300 anos, e é uma vinícola boutique. E temos a CRF, que também é centenária. 

João Maria e João Portugal provam vinho que estagia em barrica

Quatro terroirs

Temos quatro vinícolas, mas a mais importante é a do Alentejo, seguida da Duorum. Todas essas vinícolas têm uma equipe de enólogos. Meu pai continua a ser o diretor de enologia do grupo. Cada vez mais acompanho meu pai no dia a dia das vinícolas.

Fiz agronomia em Portugal, sou engenheiro agrônomo. Depois fui para a França, estudei em Bordeaux, Montpellier e Madri. Acabei o mestrado em Madri. Fiz minha tese em viticultura, com um professor que é nosso consultor. Minha primeira vindima depois de formado foi no Chile, na Viña Montes. Comecei com meu pai em 2014. Meu primeiro trabalho foi lançar o Pouca Roupa (o Tinto, o Rosé e o Branco saem a R$ 120,90 cada no site da Casa Flora), um vinho para um consumidor mais jovem. É um nome engraçado, com um rótulo diferente. Os nossos são mais clássicos. É um vinho leve, mais fresco, uma linha mais delgada. Não é para pensar muito. Está indo bem no Brasil. Está começando em Angola.

Novidade por aqui: Vinho ícone do Alentejo é lançado no Brasil: Garrafeira dos Sócios Tinto 2017

O trabalho

Meu trabalho é muito da enologia, muito da viticultura do Alentejo e acompanhar a equipe comercial. É importante conhecer os mercados e o que os consumidores querem nos outros mercados. Às vezes quem trabalha em empresa familiar considera difícil, mas meu pai delega. Ele me manda fazer e, se estiver mal feito, toma (risos). Ele delega muito, e isso é bom.

Minha função é tentar ligar o campo à adega. Muitas vezes o que acontece é você ter os vinhos e a adega. Não há contato entre as duas. O pessoal do campo entrega as uvas e diz para fazerem os vinhos. Meu trabalho está a cada dia mais fácil porque cada vez conheço melhor as parcelas.Estou muito ligado também ao aguardente, o CRF.

A safra 2022

Será minha 12ª vindima. Serão nove com meu pai, mas fiz uma na Espanha, uma no Chile e uma na África do Sul. Ainda é cedo para dizer como será a deste ano. As vinhas estão com muito bom aspecto. Os anos de 2015, 2016 e 2017 foram muito bons e secos. As vinhas estavam a perder muita força. Em 2020 e 2021, choveu mais ou menos bem. As vinhas estão outra vez com força. Estamos contentes. Temos que ter um bocadinho de sorte para não vir um pico de calor muito grande, que é o que temos mais medo no Alentejo. Pode ser um ano bom. A safra 2021 foi muito boa, estamos muito contentes. Até agora não há nada que diga que a 2022 vá ser má.

João Maria com o cão Pingo, em frente a vinhedo da família

Lançamento à vista

Temos um vinho muito bom de 2019 do Alentejo na garrafa já. É uma Tinta Caiada.  Íamos lançar este ano, mas um amigo este ano disse para esperarmos mais um pouquinho. “Esperem que está muito jovem”. Vamos aguardar mais. Deve ser no próximo ano. Meu pai foi um dos primeiros a fazer Tinta Caiada no Alentejo. É uma uva que aguenta bem o calor.

Em breve no Brasil

O Vinha de São Lázaro

Nós temos dois vinhos agora: o Vinha do Jeremias Single Vineyard Syrah e o Vinha de S. Lázaro, um Touriga Nacional (os dois chegarão ao Brasil dentro de três meses). São single vineyards. São Lázaro é uma vinha de Touriga Nacional que está plantada ao lado da capela de São Lázaro, que está em ruínas e fica em Estremoz. O solo é calcáreo. Jeremias era um antigo colaborador nosso, que plantou uma vinha e teimou com o pai que tinha que ser à maneira dele, e agora é muito boa. É Syrah com um pouco de Arinto, em xisto. Cinco por cento de Arinto. Todos feitos em lagar, com pisa a pé.

Sustentabilidade

Nós somos sustentáveis desde sempre. Meu pai é agrônomo, eu sou agrônomo. Nossa equipe é de agrônomos. Quem vai para agronomia é porque gosta do campo. Estamos no campo e gostamos de ter as coisas bem tratadas. Queremos ser responsáveis na utilização dos recursos naturais e sempre o fomos. Agora simplesmente começamos a comunicar isso. Em 2015, ganhamos um prêmio muito importante europeu de sustentabilidade na Duorum.

No Alentejo, sempre tivemos imenso cuidado. Temos 170 hectares. Achamos que não podemos ter uma monocultura de vinha. Temos floresta, plantamos prado para as ovelhas. É responsabilidade com o meio ambiente. No meio das parcelas com vinhas, deixamos ilhas com árvores para os pássaros e os coelhos. Tentamos sempre promover a biodiversidade. Instalamos painéis solares em que estimamos que 45% da energia de Estremoz passa a ser solar. O negócio do vinho em termos de energia solar é interessante porque o momento em que gastamos mais energia, na vindima, é que há mais sol também. Quando se está a produzir muito, é quando estamos a consumir muito.

A vinha do castelo de Estremoz

Garrafas mais leves

Temos cada vez mais garrafas de vidro leve. Mas vinhos como o Marquês de Borba Reserva (R$ 924,90, na Casa Flora), um Pêra-Manca e um Barca-Velha serão em garrafas de vidro muito leve. Mas vai chegar lá.

Escassez hídrica no Alentejo

Temos sérios problemas de falta de água o Alentejo. Tudo é com rega gota a gota. Só regamos quando há necessidade. Reutilizamos água da adega para irrigação. O plantio de castas locais ajuda a reduzir o consumo d'água porque já estão acostumadas ao calor. Trabalhamos com cobertura vegetal. Trabalhamos com enrelvamento, que ajuda a manter a umidade no solo. Se você limpar tudo e não houver erva, a umidade do solo desaparece toda. Pequenas coisas vão fazendo a diferença. E temos colaboradores na vindimas focados no gasto da água. Se vamos lavar a cuba, tem que ser com o mínimo de água possível. Todos os anos sensibilizamos mais os colaboradores na vindima.

O Alentejo está fazendo um programa sustentável de vinhos. Você tem que mostrar que está sendo sustentável. E também no nível social, não só ambiental. Recebemos essa certificação. Fomos o 11º. Não tivemos que alterar nenhuma coisa, demorou por causa dos papéis. Nosso cuidado já lá estava. Temos agora que comunicar isso.

Vinhas orgânicas

Na parte de viticultura orgânica, se há sítio onde dá para fazer vinhos orgânicos bons é no Alentejo. É muito seco. Não é fácil haver fungos. Meu pai em 2011 começou a primeira conversão na Quinta da Viçosa. Em 2015, tivemos a primeira uva biológica. Em 2022, um terço das nossas uvas vai ser biológica. Não sei se vou converter tudo, mas devagarinho vou aumentando a área. Não quero fazer tudo de um dia para outro, que também é arriscado e não é sustentável. Vamos devagarinho: cinco hectares num ano, dez num outro.

Aquecimento global

Estamos preocupados. Eu não sou tão pessimista. Há pessoas que acreditam que daqui a alguns anos vai ser difícil fazer vinhos no Alentejo. Respeito as opiniões dos outros. Cada vez há mais calor, mas o Alentejo há 40 anos também era quente. Sempre foi. Cada vez mais a vindima é mais cedo. Por duas razões. Temos tido dias mais quentes. A viticultura também é mais moderna, o que faz com que as uvas amadureçam melhor do que há 40 anos. Depois cada vez mais o consumo dos vinhos é por rótulos mais frescos, mais vivos. E apanhamos as uvas mais cedo também. Não há muito tempo não começávamos uma vindima antes de setembro. Agora em 5 de agosto estamos vindimando em Estremoz.

Novo sistema de vinhas

Estamos desenhando um sistema de vinhas, plantamos cinco hectares sem arames em casa do meu pai. Uma vinha livre. Um vaso em altura. O objetivo é que a própria planta consiga produzir os cachos e faça uma espécie de arvorezinha. Para proteger da radiação solar. Muitas vezes, o que causa do escaldão não é a temperatura, mas os raios UV. Eles queimam a película da uva. Fizemos um sistema tradicional de condução da vinha no Alentejo. Fizemos como se fosse uma árvore, que protege os cachos com as folhas. Eles não ficam à mostra e não se queimam com as radiações solares. Ficou uma vinha muito bonita. Plantamos Alicante Bouschet.

O vale do Rio Douro

Tendências

Há uma tendência clara que as pessoas procurarem vinhos bem descontraídos, menos poderosos, mais frescos. O hábito de consumo mudou. Em Portugal, se bebêssemos no almoço o Marquês de Borba Reserva, à tarde não iríamos trabalhar. A vida não está para isso hoje em dia. Vivemos sempre a correr e não há tempo para fazer uma digestão de um vinho pesado e de um prato pesado. Cada vez serão vinhos mais light, não tão concentrados, com menos álcool.

Nos brancos, nós nos sentimos muito confortáveis em fazer vinhos mais frescos e mais leves. Nos tintos, achamos que o Alentejo tem potencial para fazer vinhos com estrutura, mas devagarinho temos que caminhar para vinhos mais leves e elegantes. Nosso exemplo disso é o Estremus (R$ 1.809,90, na Casa Flora), um topo de gama. Meu pai sempre foi conhecido por fazer vinhos de muita estrutura e muito poderosos. Ele é um vinho com elegância, com Trincadeira e Alicante Bouschet, que é muito concentrado, mas muito fresco. Acho que é um bocadinho o futuro do vinho.

Outra tendência mundial é que há cada vez menos tempo para tomar vinho. De certa maneira, vamos tomar vinhos melhores. Nossos vinhos no Brasil são de média gama e de topo de gama. Eles têm nome, são de uma marca forte. João Portugal Ramos e Duorum são fortes no Brasil. Vai chegar a uma altura em que as pessoas ao invés de beber três garrafas de vinho barato vão beber uma de um vinho melhor. E vamos estar aí.

O vinho preferido

O Marquês de Borba Reserva

O meu vinho preferido é o Marquês de Borba Reserva. É o que eu gosto mais. Tem muito significado emocional para a família. Meu pai ganhou vários prêmios como consultor, mas com um vinho dele foi como Marquês de Borba reserva. Foi o melhor vinho de Portugal em 1997, logo o primeiro. Fizeram uma prova na Alemanha com os vinhos de topo da Espanha e de Portugal e ele ganhou. A safra 2011 foi considerada o melhor a vender no Brasil. É o vinho em que meu pai imputou mais a sua cunha como enólogo, da maneira dele, como ele gosta dos vinhos. Nós concordamos mais ou menos em sintonia, eu e meu pai. É o estilo que estou acostumado.

O mercado brasileiro

O Brasil é um mercado com grande carinho para os vinhos portugueses. É o quarto maior mercado para os vinhos de Portugal. Mas não é o nosso quarto maior mercado. Vamos fazer com que seja. O brasileiro gosta de beber vinho português. E a comida brasileira tem muitos pratos em comum com a portuguesa. Acho que nossos vinhos vão bem com a comida brasileira. Estamos em boas mãos com as distribuidoras aqui. O Brasil só pode crescer. Há muita coisa feita, mas há muito por fazer.

Qual é o campeonato

Nós vendemos vinhos de uma gama mais alta. Não estamos a competir com vinhos de mesa, de entrada de gama, de um euro. Não é o nosso campeonato. E acho que não devia ser o campeonato de Portugal.

O Brasil é o mercado mais fácil para o português vir vender vinho. O brasileiro é muito parecido com o português. É um povo simpático, um país lindo. Todo português tenta vir vender vinho no Brasil. A pressão que há dos produtores portugueses nos pontos de venda é enorme. Ontem fomos almoçar. Estávamos nós e apareceram outros produtores. Isso torna tudo mais difícil para fazer volume. É um país com um nível de sommeliers nos restaurantes muito alto. Muito melhor que em Portugal. Tratam muito bem o vinho no Brasil.


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