Envolvido com a vindima de uvas tintas, que deve ir até a primeira semana de outubro, o produtor Alexandre Relvas Júnior, da Casa Relvas, enfrenta o calor do verão no Alentejo que causou um pequeno atraso na operação, além de tomar vários cuidados na produção em razão da pandemia de Covid-19. Entre as castas colhidas, estão a Trincadeira, que ele chama de mal-amada, e a Syrah, um caso de adaptação perfeita ao terroir da região. As duas cepas mostram bem o caminho escolhido por essa vinícola familiar que conquistou mais de 300 medalhas em concursos internacionais nos últimos dez anos e que tem os pés fincados na tradição. Um dos focos da casa é a sustentabilidade, exemplificada na estação de tratamento de água e numa floresta de sobreiros. É de lá que vem a cortiça para as rolhas dos vinhos elaborados pela Relvas, uma das maiores produtoras de cortiça do mundo. As outras atividades são a criação de cavalos e ovelhas e a produção de azeite de oliva.
- A vindima em Portugal, no Douro, está muito avançada. No Alentejo, estamos com uma ou duas semanas de atraso com relação ao ano passado. Isso porque fez muito calor no verão e o que fez com que houvesse bloqueios na vinha que atrasaram a maturação. Como fez bastante calor, o mês de julho foi muito quente, com muito sol, o nosso desafio foi manter um estresse hídrico moderado, para as uvas não secarem, e as plantas não sofrerem demais. Na adega, o desafio será respeitar ao máximo as cascas, as películas. Tenho certeza que, daqui para a frente, vamos ter algumas películas mais fragilizadas. As películas das uvas têm células, tal como a nossa pele - explicou Alexandrea Relvas que mostrou a colheita manual e a chegada das uvas à adega, ao vivo, pela internet, junto com a importadora Cantu, na semana passada.
Relvas conta que a pandemia obrigou que tomassem medidas bem antes da vindima:
- Nós somos 90 pessoas na Casa Relvas. Na safra, entram mais 15. Já tínhamos um protocolo para Covid 19 antes da colheita, que passa por sensibilizar as pessoas para terem cuidado. Todos que vêm trabalhar conosco fazem o teste. Reduzimos muito a visitação de turistas não só em quantidade, mas a área com que eles têm contato. Não vão à produção nem encontram as pessoas que trabalham aqui. E tentamos separar também os diferentes grupos da vinícola. Temos sorte porque o Alentejo não é um sítio com mais casos da doença. Até agora, temos conseguido gerir relativamente bem a situação - detalhou.
Relvas disse que a colheita está sendo feito em duas herdades. Na São Miguel, a estrela é a Trincadeira, retirada da primeira vinha plantada por seus pais, nos anos 2000. Ela é usada no rótulo Herdade São Miguel Pé de Mãe.
- A Trincadeira é uma uva típica do Alentejo, uma das mais plantadas. No solo de São Miguel, de xisto e com alguma argila, tem resultados fantásticos. É uma casta que precisa de alguns anos para evoluir na vinha. E tem uma longevidade fora do normal na garrafa. É uma uva muito mal-amada porque faz vinhos mais ligeiros, com muita acidez e menos concentrados. Mas é uma das mais adaptadas ao terroir alentejano e uma das que achamos que temos melhor resultado.
Ele contou que o rótulo recebeu o nome de Pé de Mãe porque suas uvas vêm do vinhedo que gera os outros pés desta uva na vinícola:
- Pé de mãe é o nome dado às plantas de onde se tiram mudas para a plantação de novos vinhedos. É um pé de vinha que é mãe de outro vinhedo. Aquela vinha de Trincadeira é muito especial, que todos os anos mostra uma qualidade extraordinária. E nós quando quisemos plantar mais trincadeiras, corremos atrás de material vegetativo para os novos vinhedos e foi muito difícil encontrar com a qualidade que pretendíamos. Decidimos fazer um campo de pé de mãe nessa vinha e escolher aí plantas para dar mudas para novos vinhedos. Por isso, decidimos chamar este vinho de Pé de Mãe.
Segundo Relvas, essas vinhas estão plantadas em um solo muito extremo, com muito xisto e pouca água. Na avaliação dele, elas estão em um ponto de equilíbrio que não vão produzir uva demais:
- Desde que começou este projeto, elas estão em sequeira. Não são regadas. Uma das coisas que nós queríamos ver era as plantas que melhor se adaptam à seca. E o vinho é fermentado de cacho inteiro, em cuba de inox aberta por duas, três semanas. Tem um forte componente aromático. É vindimado relativamente cedo. Tem uma fruta muito fresca, mas uma acidez refrescante. A meu ver, é fora de série. É estagiado durante 12 meses em tonéis - detalha.
Já vindima na Herdade da Pimenta, a dedicação vai para a Syrah, que faz parte do corte do Herdade São Miguel Colheita Fracionada tinto.
- Essa adega fica no centro da vinícola. Isso nos permite vindimar à máquina e muito rapidamente receber a uva na adega. Não passa mais de meia hora. A Syrah tem cachos menores que a Trincadeira. Ela faz vinhos com melhor concentração e mais carnudos.
Relvas lembra que a Syrah não é uma uva portuguesa. Ela foi introduzida no Alentejo pela Cortes de Cima:
- O Alentejo é o Novo Mundo dentro do Velho Mundo. Portugal viveu uma ditadura até 1975. Até esse ano, não se podia plantar uvas no Alentejo porque era usado principalmente para produzir grãos. Nos anos 1980, houve uma revolução. Guardou-se muito a tradição mas também se inovou muito. Isso faz com que a região seja muito interessante, com produtores diferenciadores. Nos anos 1980, 1990 foi introduzida a Syrah pela empresa Corte de Cima, que fazia um vinho que era o Incógnito, com uma uva que era proibida naquela altura. É uma casta que tem dado resultados bons na região.
O blend do Herdade São Miguel Colheita Fracionada tinto tem majoritariamente Alicante Bouschet, com 50%, além de 30% de Touriga Nacional, 10% de Syrah e 10% de Cabernet Sauvignon. A safra 2018 recebeu 90 pontos da americana The Wine Enthusiast. Também ficou em 28º lugar no ranking dos 100 melhores vinhos em custo benefício da revista. O rótulo é o best seller em faturamento da casa Relvas. Já o que tem maior volume de vendas é o Ciconia.
- O Alicante Bouschet é a terceira uva mais plantada na região. A primeira é o Aragonês, segunda é a Trincadeira. Depois o Alicante Bouschet e a Syrah. É uma uva muito interessante, que chegou com uma família inglesa no final do século XIX, a Reynolds, uma das únicas que tinha permissão de produzir no Alentejo naquela altura. Dependendo do terroir, ela pode produzir diferentes tipos de vinhos. Na Herdade São Miguel, com solos muito pobres, faz vinhos muito concentrados, com bastante acidez, muito tanino e bom potencial de guarda. Já nos sítios da nossa vinha na Vidigueira, produz vinhos em maior quantidade e muito interessantes para entrada de gama, como o Atlântico, com muita fruta e cor.
A tradição é um dos pilares dessa vinícola, como provam tanto a produção do vinho de talha - usando técnica ancestral, com ânfora, engaços, leveduras autóctones - quanto no uso da curtimenta para a elaboração de um vinho laranja.
- O Art Terra Curtimenta é uma marca em que nós usamos os antigos métodos de produção do vinho. É forma como se fazia brancos antigamente no Alentejo. A palavra curtimenta quer dizer contato com as cascas. E esse vinho tem três semanas de maceração pelicular. A uva principal é o Antão Vaz, junto com o Arinto. Depois de três semanas de contato com as cascas, é prensado e vai para a barrica, onde fica quatro de meses. É o que hoje se chama vinho laranja. Se pensarmos muito friamente, o método de produção dele é igual ao vinho tinto. Vai ter coisas que não estamos à espera quando tomamos um vinho branco. Seus forte componentes aromáticos, mais gulosos, são mais chegados a um tinto que a um branco. Depois na boca, os taninos - detalha. A primeira safra do Curtimenta é 2015. Já foram quatro edições.
Produção sustentável
Com relação à sustentabilidade, Alexandre Relvas frisa que foi elaborado um projeto, há seis anos, com uma série de metas pontos como energia e água. "Hoje estamos mais cientes e informados do estado do planeta", acrescentou. Ele lembrou que a região sempre enfrentou períodos de seca, alguns deles severos, como no início dos anos 2000.
- Um ponto importante é o uso racional de água e sua reutilização. O Alentejo é uma região no Sul de Portugal quente e com secas prolongadas. A água é uma de nossas grandes preocupações. Não só pelo plantio das vinhas mas porque é um bem essencial de tudo e de todos. Primeiro, diminuímos a quantidade de água gasta por garrafa produzida. Estamos com dois litros de água por garrafa. Já tivemos a seis. Nosso objetivo é chegar a 1,5 litro. Toda essa água, devido a um investimento forte que fizemos em uma estação de tratamento, é reciclada e usada novamente para a rega do vinhedo. Outro tema é o carbono, em que a Casa Relvas está muito confiante. Uma das atividades é a floresta de sobreiros. Somos autossuficientes no balanço de carbono.
Vendas em queda só em Portugal
Alexandre Relvas contou que a crise causada pela pandemia provocou uma queda de 11% nas vendas de vinhos alentejanos, causada principalmente pelas baixas compras de restaurantes.
- Na Casa Relvas, damos graças a Deus. Estamos a manter as vendas em todos os mercados, menos em Portugal porque deixamos de vender em restaurantes. O Alentejo é uma região com estoques historicamente baixos, há sempre menos de uma safra dentro das vinícolas. Então até agora não existe um problema de excedente de estoques na região.
Segundo Relvas, o Brasil é o segundo maior mercado de exportação da vinícola.
- O maior mercado ainda é Portugal. Nós exportamos 60%. Depois, vêm Rússia, Brasil, Estados Unidos e Bélgica. O Brasil representa 10% a 15% das nossas vendas.
A Casa Relvas tem um portfólio de vinhos, com mais de dez marcas, dos mais simples aos de alta gama.
- Aqui temos a sorte ou o azar de fazer vinhos desde o Barricado, que está no Brasil a cerca de R$ 40 até o French Collection, que está, penso eu, a volta de R$ 1mil. Logo temos vários tipos de viticultura e vários tipos de enologia no nosso processo de vinificação.